Textos críticos
Ivan não busca o exótico, sua força é serena e ampla, imprimindo-se em cada elemento. Transforma a realidade a partir da qual parte com sinceridade e fantasia, resultando em uma simples arte de sentimentos e sensações. Planos grandes e pequenos combinam-se harmoniosamente em composições diversificadas. Cada fotograma contém uma singularidade particular, um ritmo próprio e é sempre possível ver mais ao olhar novamente. A cor, ora profunda e misteriosa, ora clara e iluminada, expande-se em formas inventivas de grande riqueza, através de um tipo de material limpo e bem trabalhado.
Ana Sant’Anna (Catálogo da exposição no MAM, 1960)
Chamar um artista de primitivo, ou elencá-lo dentro da arte naïf, seguindo a nomenclatura francesa, continua gerando uma certa polêmica. Ao identificar a pintura de cerimônias afro-brasileiros com a mais pura experiência ocular mediante um sem-fim de brancos dos hiper-realistas rendados; ou tratar a plasticidade imbuída no barroquismo das indumentárias das sacerdotisas Iorubás e ao invocar o brilho encantatório do dourado que vem a conectar passado e presente, a arte de Ivan Moraes ancora as suas mais férteis indagações plásticas nessas intuições reveladas pelo artista ingênuo, mas avistando perspectivas que aquele desconhecia. A priori cativado pela tradição popular, vibrante e eloquente, seus ritmos nos fazem adentrar em cada uma das obras de maneira não passiva. Ou são as listras dos tecidos a cores nitidamente tingidos ao gosto africano, ou são as superposições de rendas sobressaindo em relevos ilusórios as que dialogam com os fundos exagerados por persuadir a experiência ritual e dançante. Os corpos pretos, de presença volumosa, aparecem como retratos coletivos, arranjados segundo composições igualmente sinuosas. Obras que magnificam a natureza nobre das baianas, a miúde retratadas, ou que nos acordam para os conjuntos dos fiéis absortos com os cânticos de fé, fazendo rodas ou prostrados em reverência, simulada por habilidosos escorsos. Tudo confabula para o maravilhamento, e não por acaso fora chamado por Teixeira Leite de “Matisse dos trópicos”. A chave desses artistas que veneravam o primitivo orientava a arte nova, pelas arestas do decó, e dos alinhamentos desse traço sintético único e modernista que encabeçava Matisse. Destacando-se com aluno de Ivan Serpa, no MAM-RJ, um dos poucos a trabalhar esses mal chamado “primitivismo” já desde 1960 o próprio MAM lhe convida a uma individual. Esses preceitos de sua obra foram já notados pela voz crítica que Incluía desde Geraldo Viera até Quirino Campofiorito. Esses traços de sua poética foram novamente reconhecidos ao ser um dos brasileiros de VI Bienal de São Paulo e logo em seguida na Bienal de Paris do mesmo ano. Em 1966 ele novamente é celebrado pelo Museu de Belas Artes, na coletiva dedicada aos artistas primitivos. Sua carreira teve inúmeras exposições nas principais galerias de Rio de Janeiro. Em 1998 o SESC inclue suas obras na Bienal de Arte Naïf. Seria impossível separar a história da pintura dessas fontes populares. Mas no seu caso o uso da indumentária para criar planos superpostos e conjugados, o paroxismo criado pelos mais ínfimos detalhes das rendas, padronagens simples ao gosto africano, o seu objeto de fascinação, resultam em beleza única.
Xenia Bergman, Curadora e Historiadora de arte e Pesquisadora
As pinturas deste jovem fascinam sem que ninguém perceba imediatamente porquê. A graça e a fada, o mágico e o edênico, encontram-se na simplicidade, na face ingênua de suas criações. [...]
Candomblé, memórias de ritos, visões religiosas, gente em situação de rua. A imaginação rica em significados humanos. O mundo da imagem anedótica, mas que não carece de expressão rigorosa da comunicação artística, seja na forma plástica de confirmar, seja no cuidado estético do cativo. Comunicação sempre artística, seja na forma plástica de confirmar, seja no cuidado estético de cativar. Comunicação sempre artística com o calor comovente de uma mensagem.
Quirino Campofiorito (do catálogo da exposição do MAM, agosto de 1961)
Nascido em 1936, o carioca Ivan Moraes já concluira o curso de Serviços Sociais quando decidiu dedicar-se seriamente à pintura (que o fascinava desde pequeno), ingressando em 1953 no Instituto Municipal de Belas Artes do Rio de Janeiro, na aula de pintura do veterano pintor Cadmo Fausto: teria sido ele próprio pintor acadêmico se em boa hora não tivesse optado por estudar no Museu de Arte Moderna com Ivan Serpa, que lhe reconheceu o talento, revelou-lhe a cozinha do ofício e lhe respeitou o mundo de ideais. A primeira individual, em 1960, revelou um jovem pintor cuja temática, dominada por nédias baianas de saias rendadas, cenas de candomblé e outras interpretações de ambiência afro-brasileira, contrastava enormemente com o que se fazia então no Rio de Janeiro e em São Paulo, momento em que mais se digladiavam realistas sociais ou românticos, abstracionistas líricos ou informais, geométricos, concretos ou neoconcretos. Num primeiro instante, e meio apressadamente, a critica nele identificou um pintor ingênuo a mais; só que a sua era uma ingenuidade diferente, de alguém ( como um olhar em maior profundidade revelou), em quem o pitoresco se subordinava ao pictórico: via-se na verdade naquelas telas aparentemente singelas a mão de um artista obviamente dotado de bom domínio técnico e senhor de um estilo pessoal. Pelas próximas décadas Ivan de Moraes pouco ou nada se afastou de sua temática original, indiferente a inovações e modismos. Mas, como bem sabem os que amam de fato a arte, numa pintura o que importa não é o tema, mas sim o modo como se o trata. E é justamente aí que reside o valor de Ivan de Moraes: veja-se a ênfase que o colorido assume em suas obras, a maneira como trabalha a matéria (no rendilhado à custa de branco sobre branco das saias de suas baianas, por exemplo), o ritmo ondulante que a sucessão de cabecinhas negras cria no espaço pictórico, a composicao, a atmosfera enfim. Além do mais, suas pinturas são decorativas, no sentido de que são decorativas as pinturas de um Matisse por exemplo, um Matisse tropical que pintasse Baianas em lugar de odaliscas. Hoje, decorridos 20 anos da morte do autor, suas pinturas continuam palpitantes de vida, testemunhas do glorioso momento em que viveu e trabalhou Ivan de Moraes, o importante e singular artista que a presente exposição ora vem resgatar.
José Roberto Teixeira Leite, Jornalista, Professor, Escritor, Curador e Crítico de Arte Brasileiro